A tradicional e conceituada revista médica britânica The Lancet, no editorial do último 10 de maio, divulgou reportagem acerca dos 50 anos de lançamento da Fluoxetina. A disponibilidade deste novo medicamento, cuja referência é o Prozac, levou a uma verdadeira transformação na abordagem farmacológica da depressão. E da própria maneira da psiquiatria – e da Medicina, sensu lato - refletir sobre uma mudança de paradigmas relativos à depressão. Até então, embora houvesse uma certa diversidade de drogas antidepressivas, se comparássemos a depressão com outras doenças psiquiátricas, enfrentava-se um problema complexo: a má tolerância e a baixa aderência (assim se denomina a adesão dos pacientes às proposições de tratamento das doenças, prescritas pelos médicos, no sentido do uso adequado e regular) em decorrência de seus efeitos colaterais e reações adversas. Para que tivessem maior eficácia, necessitava-se de doses relativamente altas – e os efeitos colaterais são dose-dependentes. Este fato trazia limitações ao uso destes remédios, comprometendo a aderência e criando dificuldades no tratamento da depressão.
A depressão é uma doença crônica, um dos polos do espectro do transtorno bipolar, cujas manifestações podem variar desde uma depressão grave, associada a pensamentos intrusivos de morte até um quadro maníaco com sintomas psicóticos. Mas eventualmente somente sintomas depressivos se expressam.
A depressão na história
A depressão acompanha a humanidade através da história. Na Idade Média, a visão do mundo era fortemente influenciada pela igreja, sugerindo-se que o problema era de ordem espiritual, e que seu surgimento decorria de possessão demoníaca ou punição dos deuses. O tratamento era de ordem punitiva e moral. Pobres doentes... Além de sofrerem miseravelmente por um distúrbio psíquico caracterizado por tristeza, desânimo e negatividade, eram amaldiçoados e culpabilizados pela sociedade. Curiosamente, o mundo árabe tinha outra compreensão do distúrbio. A Medicina Tradicional Árabe Unani olhava para a melancolia dentro de uma perspectiva clínica, e sugeria cuidados com a alimentação, uso de plantas medicinais e e emocional como intervenções terapêuticas. Foi o psiquiatra francês Phillipe Pinel que reconheceu a depressão como uma entidade mórbida, já no século 19. Traduzindo, Pinel reconheceu que a pessoa deprimida estava doente. Padecia de doença mental. O Prozac foi a primeira droga da classe dos inibidores seletivos de recaptação da serotonina – os ISRS. Estas drogas apresentam um perfil de tolerância muito melhor que os tradicionais antidepressivos tricíclicos. A Fluoxetina ampliou, portanto, a possibilidade de um tratamento farmacológico para a depressão. Cinquenta anos depois, existe uma melhor compreensão da farmacologia dos ISRS. Evidências am a eficácia destes medicamentos na depressão grave, havendo benefícios para milhões de pessoas em todo o mundo, inclusive os idosos, cuja tolerância aos medicamentos mais antigos era ainda pior. Portanto, atualmente, vivemos um contexto que nos oferece uma perspectiva mais positiva para o tratamento da doença.
A vida medicalizada
Por sua melhor segurança, estes medicamentos aram a ser usados de maneira pouco criteriosa por ampla gama de especialidades médicas. Questões cotidianas, como o luto e as separações, aram a ser tratadas com remédios, gerando um fenômeno conhecido como a medicalização da vida. Uma visão psicodinâmica da doença e a oferta de cuidados psicológicos – cuja ibilidade à maior parte da população é estreita – ou a ser negligenciada. Multidões usam estes remédios de forma contínua e pouco criteriosa. O problema, muitas vezes, a a ser somente a obtenção das receitas controladas, para que se dê continuidade ao tratamento. As Unidades Básicas de Saúde e os Pronto-Atendimentos enfrentam uma enorme demanda por receitas – e criam estratégias para resolvê-las. Psicoterapia, orientações sobre mudanças no estilo de vida e a suspensão das drogas – que frequentemente ocorre de maneira anárquica, sem supervisão adequada, cursando com sintomas de abstinência, conforme artigo do Lancet – são poucos contempladas.
O Prozac, portanto, parece não representar a solução para este mal. A depressão, uma das principais causas de sofrimento mental no século 19, vem sendo tratada de forma fragmentária, em abordagem essencialmente biológica. A Medicina, que cada vez mais se enraíza na forma de um complexo médico-industrial – e menos humano – vai avançando no tratamento de eventos vitais normais e esperados. Tudo vira doença. Estaremos todos doentes? Bem, pelo menos tem remédio para tudo. Só para a morte não tem remédio. Por enquanto.